Em entrevista à BBC Brasil, presidente do TSE disse que 'caixa 2 tem que ser desmistificado' e que companhias optaram por doar fora da contabilidade oficial para evitar achaques.
O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes, disse em entrevista à BBC Brasil que as empresas fazem a "opção" de doar para campanhas por meio de caixa 2 (fora da contabilidade oficial) para evitar serem achacadas por outros políticos, principalmente governistas.
"A princípio, para o candidato seria indiferente, seria até melhor que ele recebesse pelo caixa 1", reforçou.
O ministro afirmou também que é "absolutamente normal" candidatos ou dirigentes partidários pedirem recursos a empresas. A afirmação foi feita quando a BBC Brasil mencionou as acusações de que o presidente Michel Temer teria participado de um jantar com o empresário Marcelo Odebrecht no qual teria sido combinada a doação de R$ 10 milhões para campanhas do PMDB em 2014, via caixa 2.
Temer nega ilegalidades e diz que fez apenas pedidos de contribuições oficiais.
Gilmar disse também que o "caixa 2 tem que ser desmistificado" e que "necessariamente ele não significa um quadro de abuso de poder econômico", fazendo coro a recentes declarações do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Por outro lado, o ministro fez fortes críticas ao PT, o qual acusou de criar uma "corrupção centralizada" e instalar "uma clara cleptocracia (governo de ladrões) no Brasil".
Mendes fez distinção entre as acusações de que ambas as principais chapas concorrentes na eleição de 2014 (a de Dilma Rousseff e a de Aécio Neves) tenham recebido caixa 2. Segundo Mendes, a candidata governista tinha necessariamente mais condições de atrair recursos.
"Por que um candidato de oposição vai pedir recurso no caixa 2? Isso talvez tenha mais lógica para a estratégia de quem doa. 'Ah, eu quero doar no caixa 2 para não ser conhecido, para não ser pressionado'", afirmou, minimizando eventuais irregularidades da chapa tucana.
Segundo reportagens da imprensa brasileira, executivos da Odebrecht afirmaram na última semana, em depoimentos no TSE, que a empreiteira doou R$ 150 milhões para a chapa presidencial eleita em 2014, formada por Dilma Rousseff e Michel Temer, sem esclarecer quanto seria caixa 2 ou propina.
Já para o PSDB teriam sido repassados para campanhas, sem registro oficial, R$ 9 milhões, a pedido do então candidato Aécio Neves.
O TSE se prepara para começar a julgar neste ano uma ação movida pelo PSDB em 2014 que pode levar à cassação de Michel Temer, justamente por suspeitas de ilegalidades na campanha presidencial.
Embora seja amigo do presidente, Mendes refutou que seja suspeito para conduzir o processo. A princípio, sinalizou que a jurisprudência não permitiria separar as contas de campanha de Dilma e Temer - uma eventual separação poderia preservar o vice de uma cassação caso a chapa seja condenada. Por outro lado, indicou que o TSE pode manter a elegibilidade de Temer, se não ficar provado que ele teve papel chave na captação de recursos. Isso abriria espaço para que Temer, mesmo cassado, volte à presidência por eleição indireta do Congresso.
Confira abaixo a entrevista concedida no TSE, na quarta-feira.
BBC Brasil - O processo que pode cassar o presidente Michel Temer é complexo, mas a Justiça eleitoral exige processos mais rápidos que a Justiça comum por causa da duração dos mandatos. Gostaria de saber se o senhor acha que esse processo está muito longo e se vê um horizonte de quando a ação pode ser julgada, se pode ser concluída neste ano.
Gilmar Mendes - Esse processo é marcado por muitas singularidades. Primeiro porque pela primeira vez se aceita uma ação de impugnação em relação ao mandato presidencial. Por isso, nós consumimos algo em torno de um ano discutindo a admissibilidade da ação, praticamente todo 2015 . Aí fomos para a fase da instrução, definido o relator. Também houve a substituição do relator (devido ao fim do mandato da primeira relatora).
Tivemos ainda outras intercorrências, toda essa questão da Lava Jato, compartilhamento de provas. Agora mesmo, o relator Herman Benjamin reabriu praticamente a questão, tendo em vista as delações (da Odebrecht). É um trabalho bastante difícil e acredito que possivelmente, se não conseguirmos julgar nesse primeiro semestre, vamos começar a julgar no segundo.
BBC Brasil - E para concluir o processo?
Mendes - Isso depende, nós não sabemos bem. O relator, que tem um conhecimento pleno das questões, vai colocar isso à disposição dos ministros, os ministros vão analisar. Mas veja, no caso específico da admissibilidade, nós tivemos primeiro o meu pedido de vista, em relação ao voto da relatora, que queria encerrar o processo, depois um voto de vista do ministro Luiz Fux, depois o voto de vista da ministra Luciana Lóssio. Nada exclui que ministros não se sintam habilitados (para votar imediatamente), que venham a pedir vista, então é difícil estimar.
BBC Brasil - Fala-se muito na imprensa brasileira como se fosse uma estratégia da defesa do presidente justamente tentar adiar ao máximo o término. Pedidos de vista, se forem muito demorados, não podem passar a impressão para a população de que a estratégia está funcionado e o governo está conseguindo interferir?
Mendes - Não, não tem interferência do governo. Mesmo agora que está havendo substituição dos juízes (dois ministros cujos mandatos estão terminando), nós estamos colocando na lista (tríplice que o STF indica ao presidente) aqueles juízes que já compunham o tribunal anteriormente, na condição de substitutos. O que existe hoje na verdade é muita tensão e muita lenda urbana. Os pedidos de vista aqui (no TSE) também não demoram, em geral, em duas, três semanas, os ministros devolvem.
BBC Brasil - Para que o TSE casse uma chapa não basta ter uma ilegalidade, ela tem que ser grave a ponto de ter interferido na eleição. Se for comprovado uso de caixa 2 de milhões e milhões de reais, isso é grave o suficiente para cassar uma chapa?
Mendes - Esse é um caso que está revestido de uma série de peculiaridades, como já apontei, inclusive uma delas é o fato de a presidente, que é a cabeça de chapa e aparentemente seria a responsável por todos esses abusos e excessos, não está mais aqui, no mundo da vida política. Portanto, isso também vai criar para o tribunal mais um desafio: separa ou não separa (a situação de Dilma da de Temer)? Qual vai ser a responsabilidade do vice? Tudo isso terá que ser contemplado. Então, a gente não lida com isso com uma fita métrica, não é?.
Agora, eu disse isso desde o início. Não estamos discutindo aqui se vai haver no final cassação ou não. O importante era saber, diante das denúncias, o que ocorreu. O que de fato ocorreu? Esse dinheiro foi realmente vertido da Petrobras para todo o sistema?
BBC Brasil - Mas o senhor está dizendo então que é mais importante saber do que propriamente julgar e cassar a chapa?
Mendes - Esse processo é importante independente do resultado. No fundo, o que nós estamos aprendendo em relação a tudo isto? É algo singular, de fato o PT, e seus aliados, levaram talvez ao radicalismo a ideia do centralismo democrático. Talvez graças a isso que se chegou a esse estado, porque é uma corrupção centralizada.
Nós não sabemos que tipo de Estado nós criamos. Eu estou convencido que nesse período todo se instalou uma clara cleptocracia no Brasil.
BBC Brasil - A gente sabe que essas revelações de caixa 2 não estão restritas ao PT, há vários partidos sendo acusados dessa prática. No caso do presidente Michel Temer especificamente, ele está sendo citado como se tivesse participado de um jantar com o Marcelo Odebrecht em que teria sido acertada doação de R$ 10 milhões de reais de caixa 2. Mas queria falar sobre a questão da separação de contas (de campanha) que o senhor trouxe aqui. Os votos que elegeram Dilma foram os mesmos que elegeram Temer. Então, como seria possível considerar que os votos que elegeram Dilma foram de alguma forma viciados por uma eleição com ilegalidade, mas isso não atingiu a eleição do presidente Temer?
Mendes - Mesmo em relação a essa questão que não está na sua pergunta, sobre candidatos ou dirigentes partidários pedirem recursos, é absolutamente normal. Foi até uma decisão pós-Collor. Até então (governo de Fernando Collor) eram proibidas as doações de pessoas jurídicas.
Portanto é normal, em princípio, o pedido (feito por Temer). "Ah, mas pediu caixa 2, não pediu caixa 2". Em princípio, pela nossa experiência até aqui, a rigor não tem ônus nenhum para os candidatos receber de forma regular. A opção do caixa 2 ou caixa 1 é talvez um problema das empresas, para que outros não saibam. Porque no momento em que se faz a doação pelo caixa 1, ela aparece nas nossas contas aqui (no TSE) e começa todo esse jogo de pressão, eventuais achaques. Claro, se doou para um, não doou para outro. Então as empresas fazem essa opção.
Quanto à separação, nunca se pode pensar agora, e essa é a jurisprudência do tribunal, numa separação do ponto de vista formal. O tribunal tem dito inclusive que nesses casos cassa o titular, a aí aplica a inelegibilidade, mas cassa o vice dizendo que ele não tem responsabilidade, quando ele não tem responsabilidade. Então, esse é o quadro normal.
Aqui nós temos mais uma singularidade, que é o fato, como eu já disse, de a presidente não estar mais aí. Nós só temos um caso que se aproxima disso. O caso do governador de Roraima, Ottomar Pinto, que faleceu no curso de uma impugnação. E aí o tribunal, assim um pouco passando como gato sobre brasa, disse (que) não se pode imputar a mesma responsabilidade do titular ao substituto, que agora se titularizou. E fez, vamos chamar assim, uma separação ideológica, ideal, e disse "não, no caso dele, é improcedente".
É difícil se falar de separação, porque de fato as campanhas são conjuntas. Aqui é questão de construção de eventual responsabilidade, se chegar a tanto, se chegar a um juízo.
BBC Brasil - Mas no caso da responsabilidade, como o senhor falou, o que se afastaria é a punição da inelegibilidade. Agora, tendo responsabilidade ou não o presidente Michel Temer, se for decidido pelo tribunal que ouve uma ilegalidade grave o suficiente para cassar a chapa, como poderia haver uma separação, pois parece uma mudança radical de jurisprudência, poderia soar para a sociedade um casuísmo, uma coisa para salvar o Temer.
Mendes - Isso terá que ser examinado na verdade no momento oportuno. Vai ter que esperar o julgamento para resolver essa questão. Nós não temos fita métrica.
BBC Brasil - Mas uma mudança radical de jurisprudência?
Mendes - Mas não tem mudança radical de jurisprudência, não tem nada até agora. O que nós temos em vários casos? Abusos que são aferidos em relação a governadores de Estado. Abuso de poder econômico, e tudo mais. E nós temos uma jurisprudência que leva em conta justamente a desproporcionalidade do uso de forças e isso terá que ser examinado. Então nós vamos ter que aguardar o relatório e o voto do relator. Mudança radical de jurisprudência seria dizer eu puno agora a presidente e não puno o vice e deixo irresponsável. Tem que se examinar todo o contexto.
BBC Brasil - Podemos ter um alongamento desse processo e que ele venha a ser julgado no fim desse ano, quando faltar um ano para a eleição. Cassação de chapa não é algo trivial, tem consequências graves, econômicas, sociais, instabilidade. O senhor acha que os ministros do TSE devem levar isso em conta na hora do julgamento, fazer um julgamento pensando na estabilidade política?
Mendes - Eu não acredito que isso será fator decisivo. É evidente que ninguém faz Justiça ainda que o mundo pereça. Perecendo o mundo, perecemos todos. E esse é um tribunal com esse viés de orientação: se esforça para zelar pela rigidez das eleições, mas temos que saber o que de fato nesse volume de dinheiro (ilícito) veio para a campanha.
Nós verificamos por exemplo que boa parte dos gastos de campanha no caso da presidente Dilma tinha a ver com gráficas fantasmas, com recursos pouco claros no que diz respeito a dispêndios. A presidente declarou que gastou R$ 360 milhões, mas lá nós identificamos alguma coisa como R$ 70 milhões que não corresponderiam aos gastos atribuídos. Então, há muitos problemas que nós precisamos considerar tendo em vista agora todo esse trabalho importante que o relator está realizando.
BBC Brasil - Mas o senhor acha então que os ministros não vão se preocupar com essa questão da instabilidade política na hora de julgar?
Mendes - Certamente vão estar com algum olho na situação geral, mas isso não é um fator decisivo. Claro que o tribunal leva em conta: "ah, por exemplo, vou cassar um prefeito a dois meses do encerramento do mandato. Vale a pena?" Nós temos estudos aqui por exemplo de que isso tumultua inclusive o desenvolvimento de determinadas cidades, sucessão de prefeitos em um curto período.
BBC Brasil - É uma pergunta que vai estar no ar? Vale a pena cassar o presidente Temer faltando x meses ou um ano para a eleição?
Mendes - Certamente, dentro do senso prático, cada um fará essa pergunta, mas diante dos dados dos autos. Quer dizer, o que isso representa de fato, e quais as consequências e qual a sua responsabilidade no processo. Fosse o presidente Temer um ativo captador de recursos, obviamente essa pergunta pode ser respondida de outra forma. Ou se se provar que ele foi chave para a captação desses recursos, muitas das considerações mudam de figura. Por isso que eu digo, precisamos conhecer o relatório (final do processo) na sua integralidade.
BBC Brasil - Voltando ao caixa 2, uma reflexão que algumas pessoas levantam é a seguinte: se todo mundo fez caixa 2, se tanto a chapa vencedora como a chapa adversária fez caixa 2 milionário, então será que faz sentido cassar a chapa vencedora?
Mendes - Eu acho que nem o mais cândido dos ingênuos acredita que o candidato da oposição tinha a força atrativa dos candidatos da situação. Basta ver os volumes de recursos na declaração do Marcelo Odebrecht. Diz que o PT tinha um fundo de R$ 50 milhões associado à aprovação de determinada MP (medida provisória que supostamente beneficiaria a empreiteira), é uma situação realmente muito peculiar. Se eu distribuo recursos para a oposição e a situação, eu não quero que a situação, à qual estou vinculado, me cobre por estar apoiando a oposição. Em suma, é muito complexo.
Agora o caixa 2 tem que ser desmistificado também. Necessariamente ele não significa um quadro de abuso de poder econômico. Por que se faz caixa 2? A princípio para o candidato seria indiferente, seria até melhor que ele recebesse pelo caixa 1.
Por que um candidato de oposição vai pedir recurso no caixa 2? Isso talvez tenha mais lógica para a estratégia de quem doa. "Ah, eu quero doar no caixa 2 para não ser conhecido, para não ser pressionado". Se eu distribuo recursos para a oposição e a situação, eu não quero que a situação, à qual estou vinculado, me cobre por estar apoiando a oposição. Em suma, é muito complexo.
BBC Brasil - Então o senhor concorda com o presidente Fernando Henrique Cardoso que tem que ser feita uma distinção entre corrupção e o que é de fato caixa 2?
Mendes - Vai ter que se fazer alguma coisa, pois eu também posso ter caixa 2 com corrupção, em que o objetivo de fato era obter um favor e o dinheiro veio. Por isso que o nome confunde por demais.
Um deputado da Bahia me narrava a seguinte situação: "Eu cresci com todos esses construtores e essas pessoas queriam me ajudar a concorrer, mas como eu estava na oposição a Antônio Carlos Magalhães, essas pessoas só aceitavam ajudar no caixa 2". E obviamente que ele nunca declinou. Era uma realidade. Quer dizer, uma situação local específica em que o Antônio Carlos poderia cobrar aos doadores o fato de estar apoiando alguém de oposição. Nesse caso, é uma irregularidade quase, vamos chamar assim, ingênua. Haverá coisas mais graves no caixa 2.
BBC Brasil - Tem uma questão também polêmica em relação a esse julgamento que é o fato de o senhor ser amigo do presidente Temer. Para algumas pessoas o senhor poderia de alguma forma ter uma espécie de suspeição na condução desse processo. Qual a garantia a sociedade tem de que esse processo vai ser conduzido de maneira isenta, sem interferências do governo?
Mendes - É a institucionalidade do próprio tribunal. Eu sempre fui amigo do presidente Temer, antes de atividade política, por atividades acadêmicas, vivências nos seminários de direito constitucional. E ele era vice-presidente quando eu era o voto divergente que abriu toda essa confusão (Mendes deu em 2015 o voto vencedor pela continuidade da ação que hoje pode cassar Temer). Inicialmente, até posso lhe confessar, eu achava que ia fazer um voto histórico, mas perdedor. Achava que ia ter dois votos comigo, talvez um, acabei ganhando por cinco a dois. Quer dizer, naquele momento eu fui insuspeito, agora sou suspeito?
BBC Brasil - A diferença é que naquela época a presidente era a Dilma. Ela seria a principal prejudicada, e o PT.
Mendes - Mas o vice-presidente era o Michel Temer. Também ele (Temer) seria cassado, da mesma forma. E relações políticas, todos nós as temos, no sentido da convivência. As pessoas não acreditam, mas eu tenho amigos no PT.
BBC Brasil - Sim, mas muitas pessoas veem o senhor, na hora de julgar, como alguém que poderia ter algum problema, alguma questão com o PT.
Mendes - Não é verdade. Em vários processos de próceres do PT, eu fui até acusado disso, por exemplo o processo contra o (ex-ministro Antonio) Pallocci, fui eu o relator do caso da (quebra de sigilo do caseiro Francenildo Costa na) Caixa Econômica (que acabou arquivado). Na verdade, como se mede isso? Com base na própria jurisprudência.
E se o Supremo fosse suspeito por exemplo por conta disso, hoje nós somos três que não fomos indicados pelos governos do PT, oito são indicados. Alguns até eram militantes de carteirinha. E o tribunal tem se portado, acredito, com um certo equilíbrio. Por quê? Porque você tem uma certa institucionalidade maior. E isso também aqui.
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